Ser filho de pais separados não é fácil e engane-se quem pensa que somente deixa marcas aos mais novos. É certo que em criança - e porque a nossa ingenuidade é, nessa altura, tão bela - é-nos impossível criar mecanismos de defesa, pelo menos os que criamos - porque é verdade que o fazemos - em adultos. No entanto, se por um lado sentimos dor, por outro, o facto de não compreendermos ou até de ignorarmos a totalidade dos motivos, serve-nos de auxílio: conseguimos, ainda assim e dentro daquilo que é possível, crescer saudáveis. Sabemos que existe um pai e uma mãe e que apenas recebemos o amor repartido (embora desconheçamos o resto), facto que, ironicamente, pode significar também recebê-lo a duplicar de cada vez que estamos com um ou com outro. Quando somos adultos, tudo muda. Conseguimos medir actos e pesar consequências. Conhecemos a verdade, ou parte dela, e sabemos onde reside a razão, ou, pelo menos, aquilo em que acreditamos como sendo certo. Por este motivo tudo se torna mais moroso, mais pesado e difícil. Julgo que a dor é menor, embora faça ferida na mesma, e todos os sentimentos que prendemos em nós - não queremos expeli-los por recear que sejam vistos (como se alguma vez pudessem ganhar forma) - se vão acumulando em nosso redor, construindo, devagar e sem que tenhamos consciência disso, um véu que, no futuro, acabará por assombrar-nos. Provavelmente não seremos capazes de percebê-lo senão no convívio e no diálogo com os outros. Por vezes, é possível que aconteça, talvez o sintamos perto num momento de reflexão ou angústia. Mas é quando entendermos e aceitarmos que a exaltação da liberdade, que por vezes se mistura com uma solidão inexplicável, reflecte não mais do que o receio de falhar, tal qual falharam aqueles cujo exemplo conhecemos, que seremos finalmente capazes de lhe encontrar a ponta e começar a desfazê-lo, fio a fio, sentimento a sentimento, mágoa a mágoa. É quando confiarmos que a entrega pode existir e nos entregarmos de verdade, sem recear a ferida que já abrimos antes e o acto de mostrarmos quem realmente somos, evitando exaltar qualidades para desfarçar fraquezas, que o véu se terá transformado num novelo branco, que agora vemos e somos capazes de sentir, mas não mais em torno de nós próprios. Aí sim seremos verdadeiramente livres e o amor não será mais medo dissimulado de rebeldia ou individualismo. Provavelmente terá o sabor doce de um chocolate quente, tomado a um domingo no sofá de nossa casa. Ou da dele/a. Certamente terá o toque da caxemira, ou o cheiro da terra molhada. O tacto do suor - e apetece-me citar "enrolados pelo chão num abraço que se viu" - e o som de um pássaro que voa livre, lá no céu, e que observamos duma planície no alentejo. Ou do vento, que sopra por entre as rochas de uma praia. A minha, porque não.
O meu novelo está já a meio. Vejo-o, sem o ver, caído ao lado do meu corpo e anseio libertar-me totalmente dele. Quero poder dizer o que sinto sem recear que me vejam núa. Porque... tenho a certeza que seríamos bem mais felizes se na maior parte das vezes perdessemos a vergonha ou o orgulho e dissessemos exactamente o que pensamos ou sentimos.