28 de Outubro de 2009

Passados quase 48 anos de luta na guerra do Ultramar, e depois de conquistada a independência em 1974, ano a que se sucederam mais 18 de guerra civil (tendo esta terminado apenas com a assinatura do Acordo Geral da Paz pelas frentes guerrilheiras, em 1992), Moçambique vive, novamente, um período de eleições. Numa altura em que o futuro do país volta a ser decidido - crendo que, desta vez, seja efectivamente para melhor (afinal, África representa, para nós, um segundo Brasil e é, globalmente, uma potência em desenvolvimento) -, vale a pena relembrar a África das colónias pela voz de alguém cujo nome é fictício mas a história real. Ou se quisermos, verídica.

 

 

Miguel nasceu a 28 de Dezembro de 1958 em Moçambique. Filho de pai português, inspector da PJ na altura, e de mãe também portuguesa mas com raízes suíças, passou a infância e adolescência em África. Vivendo no seio de uma família desafogada, cuja permanência nas colónias se devia essencialmente à profissão do pai, cresceu sem conhecer ao certo a situação de Portugal e dos portugueses no continente. Do Estado Novo, recorda muito pouco. Os anos da ditadura passou-os fora do continente e, embora regressando para férias de quatro em quatro anos (o pai acumulava-as, sendo que depois se estabeleciam em Portugal por períodos mais longos), era demasiado pequeno para poder compreender o que se passava em Portugal. Hoje, a esta distância, é capaz de analisar tudo com outra maturidade. A que lhe faltava na altura por ser ainda criança.

A propósito das férias passadas em Portugal, Miguel recorda um desses períodos, o qual se prolongou por um ano e foi, aliás, o mais longo de permanência no continente. Para um menino habituado a uma África mais aberta, menos preconceituosa e, sobretudo - embora não sendo, era-o ainda assim - mais livre, Miguel ficou surpreso com a atitude fechada e deprimida de muitos dos seus colegas de escola. Hoje, entende que isso era uma consequência óbvia da educação conservadora e do estado deplurável em que vivia a maioria da população portuguesa. Na altura, estávamos então em 1967 e Miguel estudava no continente para concluir a terceira classe, lembra-se apenas de não compreender porque todos os meninos se preocupavam em comer quando ele queria apenas brincar. Por esse mesmo motivo, conta, tantas vezes não se importou de trocar o seu almoço (consideravelmente mais farto) com o dos seus colegas. Afinal, como disse, importavam-lhe as brincadeiras (subentenda-se: mais do que a comida). Aos outros - e convém salientar que se tratavam de crianças - não. Assim era o Portugal de Salazar. 

Para Miguel, África marcou-o profundamente e por isso fala nela com um brilho nos olhos. Recorda o clima, o cheiro, o ambiente, as pessoas. Tem saudades disso. O Portugal que conhece actualmente diz ser idêntico à África de outrora, nomeadamente no que respeita ao relacionamento entre as pessoas. Isso foi o que mais lhe custou na sua adaptação ao continente aquando do seu regresso. Proveniente de uma terra onde homens e mulheres lidavam abertamente entre si, combinando piqueniques, idas aos cafés e às praias, entre outras diversões de amigos, quando chegou a Portugal, e apesar do seu regresso ter-se dado pós 25 de Abril, Miguel foi obrigado a conter-se. Um simples «olá» a uma desconhecida, que habitualmente dizia em África, foi algo que deixou de poder fazer no continente: "Lá a relação entre as pessoas era diferente. Conversava-se muito. Se não conhecias alguém, passavas a conhecer. As pessoas eram mais acolhedoras e aceitavam-se melhor" , conta. Em Portugal, a opressão havia acabado mas as pessoas permaneciam ainda muito ligadas aos costumes enraízados pela política de Salazar. Eram livres, mas demasiado contidas ainda, demasiado fechadas sobre si próprias. 

No decorrer da sua estadia em África, Miguel foi essencialmente um jovem estudante e é precisamente sob essa perspectiva que devemos entender o seu testemunho. Antes da independência de África (1974), os seus dias eram passados na escola, em casa e na rua, com os amigos. Há medida que foi crescendo também a sua liberdade foi aumentando. O futebol, jogado na rua com os amigos, foi sendo substituído por longas travessias de mota até às praias mais distantes. E se há quem pense que o faziam somente rapazes, engana-se. Também as raparigas participavam nestas actividades. Miguel recorda, com um sorriso nos lábios: "Algumas das minhas amigas nem sequer usavam a parte de cima do biquini... e isso era natural..." . 

Miguel sentiu-se sempre respeitado pelos seus amigos de África. Quando questionado sobre a relação entre portugueses e africanos, afirma que antes da independência das colónias a relação era geralmente pacífica. É certo que, a este nível, as opiniões não são unânimes. Nem nunca foram. Havia quem defendesse os portugueses e havia quem estivesse contra eles e os odiasse. No entanto, e de um modo geral, Miguel considera que os portugueses eram respeitados e que os africanos sabiam separar as águas: normalmente só reagiam a quem os ameaçasse ou tratasse efectivamente mal (era o caso dos colonos e das tropas portuguesas). Como jovem moçambicano que era, embora nacionalizado português por opção do pai, sentiu-se sempre em casa e as verdadeiras ameaças só começaram a surgir pouco depois da independência. Mesmo a guerra do Ultramar (1961-1974), que se prolongou até à sua adolescência, não constituiu para si uma ameaça concreta, já que os conflitos entre as tropas e os guerrilheiros ocorreram sobretudo no mato. Recorda os momentos em que, dada a intensificação dos grupos de guerrilha africanos, muitos dos seus amigos e colegas de escola foram obrigados a alistar-se nas tropas portuguesas ou, em alternativa e por iniciativa própria, em juntar-se aos guerrilheiros. Portugal visava então defender aquele que era considerado território nacional para a manutenção da unidade de que Salazar se orgulhava. Por ser ainda menor (tinha apenas dezasseis anos), Miguel não teve de se alistar na tropa. Refere que se apercebeu da existência da guerra quando o número de funerais foi aumentando, quando muitos dos seus amigos foram desaparecendo e quando a presença das tropas portuguesas nas cidades foi sendo também mais assídua (tentava-se então controlar os grupos de guerrilha que tomavam de assalto as cidades e largavam bombas de fraca potência em locais estratégicos). Como consequência da guerra, e talvez tenha sido essa a verdadeira marca deixada pela mesma, Miguel e os amigos, enquanto jovens que eram, passaram a olhar a vida de uma outra perspectiva. Sabiam que, mais tarde ou mais cedo, o seu destino se cruzaria com a ida obrigatória para uma guerra com a qual não concordavam. E como a hipótese de não voltar se impunha, passaram a viver no limite, como se não houvesse amanhã. "Apesar de tudo foram bons tempos", recorda.

Há medida que as tropas portuguesas foram esgotando efectivos, sem quaisquer possibilidades de reforço, as frentes de combate africanas foram ganhando terreno e expandindo-se pelo continente. A guerra chegava ao fim e Miguel desconhecia que, por detrás da derrota portuguesa, outros interesses se escondiam. Na altura, não sabia distinguir entre capitalismo e socialismo, nem tão pouco conhecia o termo guerra fria, apenas mais tarde designado como tal. Hoje, compreende que a disputa pelo poder é capaz de levar o Homem a cometer uma das maiores barbaridades: matar a sua própria espécie. 

Para Miguel, bem como para a maioria dos portugueses residentes em África, a independência, decorrente da nova situação política de Portugal proporcionada pelo golpe de Estado de 1974, constituiu, ela sim, uma mudança abrupta na forma de vida em África. A descolonização obrigava à retirada portuguesa e a existência de diferentes ideologias nos vários movimentos de libertação africanos arruinava a serenidade do processo e agravava a situação interna. Iniciava-se então a guerra civil. 

Muitos portugueses, como foi o caso de Miguel e da sua família, não puderam regressar de imediato e praticamente todos foram deixados ao abandono pelo governo português. Largados à sua sorte, tiveram de lutar pela sua sobrevivência num ambiente cada vez mais hostil para a população branca. E não só. Como conta Miguel, bastava que alguém, preto ou branco, não interessava a cor da pele, denunciasse um outro como sendo membro de um movimento oposto, que o acusado era morto. Miguel refere: "Naquela altura, uma mentira valia mais que mil verdades". 

Situações como esta passaram a ser correntes, bem como tantas outras que, na nossa conversa informal, Miguel acabou por revelar. Contou ter assistido, nas ruas de Lourenço Marques, actual Maputo, à morte de um indiano por um agente da FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique). Ele próprio foi preso, por diversas vezes, enquanto passeava na rua. Destas detenções, recorda um pormenor engraçado: "Um amigo meu, africano, que tinha sido obrigado a alistar-se nas tropas portuguesas e que passado algum tempo do seu desaparecimento foi dado como morto, tendo-se realizado o seu funeral, foi aquele que, de todas as vezes que fui preso pela FRELIMO, me libertou. Na verdade, ele não estava nada morto, tinha sim fugido e alistara-se na FRELIMO porque acreditava na libertação de África. Um dia, eu e os restantes [entenda-se: amigos], voltámos a encontrá-lo no café onde habitualmente nos juntávamos e ficámos surpresos por ainda estar vivo". 

Neste ambiente, Miguel teve de viver durante cerca de três anos. Mas se se pensa que foram anos penosos, não foram de todo. Não para ele, pelo menos. Exceptuando o facto de ter perdido o pai, que faleceu de morte natural poucos meses após a independência, Miguel viveu três anos de muito divertimento. Dedicou-se a um desporto que poderia ter mudado a sua vida. Não mudou. A dada altura o regresso a Portugal foi inevitável. 

Aquando da morte do pai, foi o irmão mais velho que ficou como seu tutor e, uma vez que este assinara um contrato de trabalho cujo termo dar-se-ia em 1978 (lembro que estávamos então em 1974/75), Miguel e a família foram obrigados a ficar. Como não podia estudar nem trabalhar, já que não possuía nacionalidade moçambicana e a escola portuguesa tinha acabado em África (Samora Machel, o primeiro Presidente da República de Moçambique, proclamara o seu fim), Miguel dedicou-se ao motocross, tendo-se consagrado campeão provincial em 1977. Foram três anos de "boa vida", como gosta de dizer e, acrescento, de um sucesso incrível que, infelizmente, as circunstâncias da vida não permitiram que continuasse. "O motocross era um passatempo", afirma. E foi nessa condição que Miguel começou de facto. As motas, nomeadamente as japonesas, eram baratas e de fácil acesso em África. Para um jovem sem qualquer ocupação, apetrechar a mota com peças novas era uma forma de entretenimento. "Tudo começou com uma brincadeira. Arranjámos [ele e os amigos] uma mota e ficou decidido que, por ser o mais leve, seria eu a participar numa das corridas que habitualmente se realizavam em África. Foi em Maputo. Fiquei em oitavo lugar", conta. A partir daí, Miguel tomou-lhe o gosto. Treinava cerca de três vezes por semana no areal das praias. Aos amigos cabia o papel de o auxiliar na manutenção da mota antes e durante as competições, sendo que inicialmente os materiais eram comprados com dinheiro próprio. Quando a participação nas corridas se tornou mais séria e frequente, a sua experiência alargou-se às motas de pista. Foi então que passou a ser patrocinado. Pela SANYO, no motocross, e pela SACHS, nas competições de pista. Chegou a campeão nacional nas corridas de pista no ano de 1978. Precisamente aquele em que teve de regressar a Portugal.

Tendo o contrato de trabalho do irmão de Miguel terminado, e uma vez que continuava sem poder estudar ou trabalhar, o regresso a Portugal era a alternativa mais viável, uma vez que também as condições de vida em África não tinham melhorado (o clima de apaziguamento que a política de Samora Machel visara introduzir não fora suficiente). Assim, a Fevereiro de 1978, Miguel e a família abandonam África. O sonho de uma possível carreira no motocross ficava então adiado.

A adaptação a Portugal foi algo que Miguel classificou de "necessariamente rápida". A perda do pai havia-o feito crescer e ele tinha consciência de que era preciso "ir à luta". Decidiu então completar o 12ºano à noite, já casado e com dois filhos. Assim que chegou foi obrigado a alistar-se na tropa portuguesa (tinha então 20 anos). Depois de cumprido o dever militar, restava-lhe «apenas» começar de novo. Foi o que fez. Actualmente, Miguel é técnico oficinal de mecânica da CP. Do motocross resta uma coisa: a recordação. Uma doce e longínqua recordação de África. A mota, trouxe-a consigo para Portugal. Está hoje, depois de alguns treinos ocasionais no período de retorno ao continente, no terreno da família. Parada e envelhecida, mas ainda assim funcional, aguarda a visita de alguém que a decida restaurar, com o intuito de dar forma e sentido a uma história que ficou por escrever.               

 

publicado por Inês Alves às 16:38
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